sexta-feira, 4 de julho de 2008

FEUSP - Seminários Abertos de Pós Graduação 1o semestre de 2003
Carlos Eduardo de S. C. Granja

A música na escola e o desenvolvimento da percepção

Music is the pleasure the human soul experiences from counting without being aware that is counting.
G. Leibniz

Reflexões iniciais e gênese do problema:
A idéia inicial deste trabalho é discutir a inserção da música na escola como forma de desenvolvimento da percepção. A percepção aqui entendida como dimensão do conhecimento, e não apenas como o aprender pelos sentidos. Isso nos leva a refletir sobre o que é o conhecimento escolar, como ele é construído, e qual o lugar e a dimensão da percepção nesta construção. De que maneira as disciplinas escolares trabalham a dimensão perceptiva do conhecimento em suas atividades ao longo da educação básica? O que podemos aprender com as artes, no sentido de explorar a percepção como foco de suas atividades? Afinal, o que é pintar, dançar, representar e tocar senão construir um conhecimento a partir de uma determinada percepção?
Escolhemos a música por esta ser uma das artes mais presentes no cotidiano das pessoas. Seja em casa, no carro, no cinema ou mesmo no trabalho, é praticamente impossível passar o dia sem ao menos ouvir uma música. Graças à tecnologia atual (Disc-man, MP3, internet, videokês, etc...), nossos alunos tem acesso à música a qualquer instante, de uma maneira jamais concebida em outras épocas. Além disso, a música é uma linguagem que fala diretamente aos sentidos e que portanto lida em várias dimensões com o desenvolvimento da percepção.
Uma implicação direta desta proposta de trabalho é a definição e os limites do conceito de percepção, sua relação com o aprender e o conhecer. A partir da minha experiência pessoal como músico e professor, procurei traçar um primeiro perfil da percepção no processo de ensino e aprendizagem.
Por exemplo: um músico pode saber o que é um intervalo musical (concepção), mas isto não implica em que ele saiba “perceber” ou “produzir” este intervalo. Por outro lado, muitos músicos e artistas populares conseguem perceber e fazer uso de intervalos, ainda que não saibam o que são. Neste exemplo, conhecer significa perceber, pelo menos no que diz respeito à apropriação da linguagem musical enquanto fenômeno sonoro.
Outro aspecto que despertou minha atenção na música foi a ligação entre percepção e intuição. Nem tudo em música é ensinado de maneira explícita. Boa parte do conhecimento é apreendido tacitamente. Aprender harmonia seria um processo exaustivo se tivéssemos que conhecer todas as notas e suas relações antes de tocá-las. Antes disso, é mais a percepção tácita de um sentido musical que nos faz conhecer os acordes, ainda que depois as relações mais específicas submirjam à consciência.
Música e corpo também estão extremamente interligados. Seja por que o ritmo está ligado ao pulso, a pulsação, a respiração, e conseqüentemente ao corpo, seja porque as notas são freqüências, e por isso também ritmos, mais acelerados e percebidos como alturas, ligadas às freqüências cerebrais. Neste sentido, percepção e corpo, assim como percepção e movimento seriam faces da mesma moeda.
Acompanhando há algum tempo o trabalho do coreógrafo Ivaldo Bertazzo com adolescentes da favela do complexo da Maré, no espetáculo “Dança das Marés”, assim como seu trabalho “Cidadão corpo”, comecei a me perguntar sobre a importância da educação corporal no processo de aprendizagem, no sentido de aumentar a concentração, a atenção e a prontidão para o conhecimento.
Não podemos negar que um dos grandes problemas da escola é a sua configuração em termos de espaço e tempo, que não favorece a aprendizagem dos alunos. Aulas expositivas em seqüência acabam por tornar o aluno passivo na construção do conhecimento, favorecendo a dispersão e obstruindo a autonomia. Salas de aula com carteiras rígidas e enfileiradas cansam o corpo e não favorecem uma postura saudável.
Será que preparamos nosso aluno para a difícil tarefa de aprender e perceber o mundo? Qual é o papel do corpo neste processo? Há uma inter-relação entre percepção, corpo e conhecimento? De que forma a música pode ser trabalhada na escola de modo a permitir um desenvolvimento da percepção dos alunos, e conseqüentemente, proporcionar uma melhor aprendizagem?

Intuição,
tácito

PERCEPÇÃO

Concepção
Corpo








A música na escola
A música já foi uma disciplina importante dentro do currículo escolar. Há mais de 2000 anos, a escola pitagórica tinha a música como uma das principais disciplinas de seu currículo. O Quadrivium, currículo que perdurou até fins da Idade Média, era formado por quatro disciplinas básicas: aritmética, música, geometria e astronomia. A geometria, ou o estudo das magnitudes em repouso, era um pré-requisito para a astronomia, estudo das magnitudes em movimento. Analogamente, a aritmética ou o estudo dos números em repouso, era um pré-requisito da música, estudo dos números em movimento. Essa aproximação entre música e matemática teve origem na Grécia com Pitágoras, que observou a relação existente entre o comprimento de cordas vibrantes e a harmonia musical, e teve um grande impacto sobre a concepção de conhecimento no mundo ocidental. “A descoberta dessa ordem numérica inerente ao som teve largas conseqüências para a edificação da metafísica ocidental, pois a analogia entre a sensação do som e a sua numerologia implícita contribuiu fortemente para a formulação de um universo de esferas analógicas, de escalas de correspondências em todas as ordens, extensivas por exemplo às relações entre som, números e astros.” (Wisnick)
Hoje, contudo, a música já não faz parte das disciplinas obrigatórias do currículo escolar, principalmente nas séries mais avançadas. Ainda que ela esteja presente nas séries iniciais da escola, principalmente na educação infantil, à medida em que se avança nas séries, a escola passa a dar maior importância às disciplinas conceituais em detrimento das perceptivas, e a música vai perdendo espaço dentro do currículo escolar.
Mesmo quando mantida no currículo, a música geralmente é tratada como uma disciplina específica, isolada das demais, e voltada para o ensino da teoria musical. A relação entre a música e as outras disciplinas é esporádica, muitas vezes se reduzindo à utilização de um material musical (CD, fita, vídeo, etc..) apenas como meio de transmissão de uma determinada informação, e não como fenômeno sonoro passível de percepção, análise e analogia com outras formas de conhecimento.
De um modo geral, o ensino tradicional de música acaba privilegiando uma abordagem conceitual, em detrimento de sua dimensão perceptiva. Isto não significa que a percepção, enquanto dimensão do processo de aprendizagem musical, seja desconsiderada. Ao contrário, sendo a música um fenômeno essencialmente sonoro, a percepção está presente em todas as etapas da aprendizagem musical. O problema está em considerar-se a percepção como uma conseqüência natural das demais etapas ou mesmo um pré-requisito do estudante, e não como eixo dinamizador do processo de aprendizagem. Daí a pertinência de uma abordagem perceptiva, que estimule a reflexão sobre como ouvimos e como reagimos à música.

O tetraedro musical
Para analisar o papel e a dimensão da percepção na construção do conhecimento, tomaremos como referência o modelo proposto por Nilson Machado para caracterizar as dimensões do conhecimento geométrico: “No processo de construção do conhecimento geométrico, em vez de uma polarização empírico/formal, é fundamental a caracterização de suas quatro faces: a percepção, a construção, a representação e a concepção.” Adaptando esta estrutura para a música, podemos caracterizar as quatro faces de um tetraedro musical:
Percepção: ouvir e distinguir os sons e suas características: intensidade (alto, baixo), altura (grave, agudo), qualidade (timbre), duração/ritmo, entre outras.
Ação: a atuação e o fazer musical (cantar, tocar, batucar, dançar, compor, improvisar, etc...)
Representação: tradução da linguagem sonora/musical para outras formas de linguagens (partitura, desenhos, etc...)
Concepção: Atribuição de significados ao fenômeno musical (teoria, sistematização)
A aprendizagem musical será tanto mais fértil quanto maior for a articulação entre essas diferentes dimensões. De fato, precisamos perceber a música para poder representá-la ou tocá-la. Representamos uma música de acordo com uma determinada concepção. O que pensamos a respeito da música direciona nossa percepção e nossa maneira de tocar, e o mesmo ocorre em sentido inverso. Estas quatro dimensões articulam-se em diversos níveis, compondo assim um espectro do conhecimento musical.
Podemos usar este modelo também para compreender os processos cognitivos de uma maneira geral, e mais especificamente a construção do conhecimento escolar. A questão fundamental que se coloca é por que, ao longo das séries, a escola acaba privilegiando a dimensão conceitual do conhecimento em detrimento da dimensão perceptiva? E se isto ocorre, quais as propostas pedagógicas que devem ser feitas para que haja um equilíbrio e uma articulação mais efetiva entre essas dimensões?





A percepção
Antes de mais nada, vamos investigar o significado da palavra percepção. No Aurélio encontramos as seguintes definições:
perceber . [Do lat. percipere, 'apoderar-se de', 'apreender pelos sentidos'.] V. t. d. 1. Adquirir conhecimento de, por meio dos sentidos. 2. Formar idéia de; abranger com a inteligência; entender, compreender. 3. Conhecer, distinguir; notar. 4. Ouvir: Não conseguia perceber os sons. 5. Ver bem. 6. Ver ao longe; divisar, enxergar:
Aqui encontramos o significado mais usual de percepção, como forma de aprender através dos sentidos (1, 4, 5 e 6). Nos itens 2 e 3, perceber está relacionado a compreender, a conhecer, portanto ligado aos processos de cognição.

Percepção e conhecimento tácito na perspectiva de Polanyi
“We can know more than we can tell”
Michael Polanyi
Em The tacit dimension, Polanyi nos diz que a percepção é uma forma de conhecimento tão legítima quanto o conhecimento conceitual. Em contraposição ao conhecimento objetivo de Popper, que desconsidera o sujeito na busca pela verdade, Polanyi incorpora a subjetividade e o tácito na construção do conhecimento. Para ele, todo conhecimento tem uma dimensão tácita. A percepção seria assim uma instância do processo de conhecimento tácito. Respaldado pela Gestalt, entende a percepção como um processo de integração tácita de sensações num objeto percebido, às quais confere um significado que não possuíam anteriormente.
Nesta perspectiva, o conhecimento tácito se dá pela integração de dois termos distintos da percepção: o primeiro termo é denominado proximal, e está relacionado aos indícios marginais de um objeto; o segundo termo é o distal, relacionado à percepção do objeto como um todo. Polanyi caracteriza estes termos numa relação funcional, onde o distal confere significado ao proximal. Toda vez que colocamos foco nos detalhes, nos indícios proximais, perdemos a noção do todo. Não é olhando para os objetos, mas “habitando-os” (indwelling) que compreenderemos o seu significado.
Neste sentido, podemos dizer que quando percebemos um objeto como um termo proximal, nós o incorporamos ao nosso corpo, habitando-o. Nosso corpo é o instrumento mais importante de todo nosso conhecimento externo, seja ele prático ou intelectual.

Percepção e a inteligência criadora na perspectiva de Marina
Em Teoria da Inteligência Criadora, José Antonio Marina concebe a percepção como uma atividade humana singular, diferente da percepção nos animais: “Perceber é dar significado a um estímulo. Com efeito, com a percepção entramos no mundo do significado, do qual nossa vida mental não vai sair mais.”
Marina traz a percepção para o mundo dos significados, orientada segundo um projeto, uma intencionalidade. O homem é um captador inteligente de informação, e pode desenvolver esta percepção no sentido que deseja. Um músico pode aprender a distinguir (discriminar) os diversos harmônicos de um som, da mesma forma que um ornitólogo aprende a distinguir as linguagens especiais de cada pássaro. “A percepção é uma arte de corte e confecção: recorto silhuetas e alinhavo a informação presente com a informação passada, naquilo que tecnicamente se chama síntese perceptiva.”
O que interessa aqui é que estas percepções são dirigidas pelo sujeito O aperfeiçoamento da faculdade perceptiva é orientado por um projeto, que define o que se quer conseguir: discernir os diferentes sons que o coração produz.”
A dicotomia entre percepção e concepção não existe para Marina. “Não existem compartimentos estanques na subjetividade humana. Vemos a partir do que sabemos, percebemos a partir da linguagem, pensamos a partir da percepção, tiramos inferências a partir de modelos construídos a partir de casos concretos.” Mas é através da percepção que nos relacionamos com o mundo e com a existência.


Percepção, corpo e motricidade na perspectiva de Merleau Ponty
Para entender melhor a ligação entre percepção e conhecimento, percepção e corpo, e percepção e motricidade, vamos recorrer à perspectiva da fenomenologia de Merleau Ponty.
Como bem coloca Tatit: “Corpo, em Merleau Ponty, é um conceito utilizado para superar a distância teórica entre sujeito e objeto, ..., e diluir as dicotomias que reproduzem a oposição entre subjetivismo e objetivismo em pares como idealismo filosófico versus empirismo científico ou metafísica versus positivismo. “
Para Ponty “Perceber é tornar presente qualquer coisa com a ajuda do corpo” . A percepção passa a ser pensada como um ato vinculante entre um corpo e um objeto. Mais do que um mosaico de sensações, a percepção de um corpo passa pela relação dialética entre o organismo e o ambiente. O corpo é o ponto de partida do conhecimento, e contém em si uma intrínseca significação.
Em Merleau Ponty, a motricidade se confunde com intencionalidade operante. Mais do que movimento, é um status ontológico. “A motricidade diz-nos que o mundo esta dentro de nós, antes de qualquer tematização. Por que o homem é portador de sentido – daí a sua intencionalidade operante, sua motricidade” (Sérgio).


Considerações finais e implicações
À luz das perspectivas apresentadas acima, podemos considerar as seguintes reflexões sobre o ensino de música na escola e o desenvolvimento da percepção.
1. Ao reconhecer que todo conhecimento tem uma dimensão tácita, o ensino de música deve contemplar essa dimensão em suas propostas pedagógicas. Metodologias que considerem a dimensão tácita serão mais férteis do que aquelas que queiram explicitar todas as suas partes componentes. Um exemplo que ilustra bem esta situação é o ensino de acordes em um instrumento.
Um acorde é formado por pelo menos três notas distintas, às quais mantém determinadas relações entre si e com a escala à qual elas pertencem. Se para aprender a fazer um simples acorde no violão precisássemos antes saber o nome de todas as notas, suas relações intervalares, sua função na harmonia, etc.., o ensino de música seria muito chato e desestimulante. Por outro lado, aprender observando outros músicos, percebendo o som do acorde e sua configuração espacial (focal) pode ser muito mais eficiente e prazeroso.
2. O desenvolvimento da percepção não implica em relegar a concepção a segundo plano. É fundamental que haja uma articulação entre os momentos de elaboração conceitual e as atividades perceptivas. Assim, quando desenvolvo minha percepção, estou ampliando a minha concepção sobre música. E, quanto mais compreendo o fenômeno musical, mais a minha percepção se desenvolve de acordo com um projeto, uma intencionalidade.
3. Uma proposta de educação musical centrada na percepção deve considerar o papel do corpo e do movimento na construção do conhecimento. A expressão musical é feita por um corpo, que percebe, conhece e se movimenta de acordo com um projeto, uma intencionalidade. A escola deveria dar mais atenção ao corpo como instrumento do conhecimento, estimulando atividades de auto-conhecimento, percepção corporal, reeducação do movimento, que possam contribuir para uma maior capacidade de concentração e prontidão para a aprendizagem.
A proposta é a de uma educação musical voltada menos para a formação de talentos musicais, e mais para a formação do cidadão, redescobrindo uma forma musical de estar no mundo. O objetivo é uma ampliação da percepção em várias dimensões: sonora, visual, corporal, espacial, interpessoal e intrapessoal. Isto pressupõe um conceito ampliado de música, para além da concepção tradicional da música ocidental. Assim, o fazer musical engloba músicas modais, folclóricas, populares, eletrônicas, etc... além de outras formas de expressão musical, como a percussão corporal, a dança e o teatro.
Vivemos num mundo bombardeado por estímulos visuais e sonoros. Nossos alunos convivem com sons das mais diversas procedências: celular, disk-man, automóveis, eletrodomésticos, televisão, internet, etc... A sala de aula não é propriamente uma sala de concerto. Vivemos em ambientes com uma vasta ecologia sonora, e estamos nos acostumando com ela da mesma forma que com o som da geladeira - só o notamos quando ele desaparece. Precisamos aprender a ouvir.
Referências Bibliográficas

ABDOUNUR, Oscar João. Matemática e música: pensamento analógico na construção de significados. São Paulo, Escrituras Editora, 1999

BREIM, Ricardo. Para uma aprendizagem musical integrada. São Paulo. Dissertação de Mestrado FFLCH-USP, 2001

BERTAZZO, Ivaldo. Cidadão corpo: identidade e autonomia do movimento.São Paulo: Summus, 1998

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo. Editora Ática,1996

MACHADO, Nilson J. Epistemologia e didática: as concepções de conhecimento e inteligência e a prática didática. São Paulo. Cortez, 1999.

MARINA, José A. Teoria da inteligência criadora. Lisboa. Editorial Caminho, 1995

POLANYI, Michael. The tacit dimension. Gloucester. Peter Smith. 1983

SÉRGIO, Manuel. Para uma epistemologia da motricidade humana. Lisboa. Compendium

SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo. Editora da Unesp. 1991

SCHINDLER, Allan. Listening to music. New York. Holt, Rineart and Winston. 1980

ROEDERER, Juan G..Introdução à física e psicofísica da música. São Paulo, EDUSP, 1998

TATIT, Luiz. Musicando a semiótica – ensaios. São Paulo. Annablume. 1997

WISNICK, José Miguel. O som e o sentido: Uma outra história das músicas. 2a edição. São Paulo, Companhia das Letras, 1989

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